A história a seguir ocorreu faz bastante tempo, no início dos anos de 1980, eu deveria ter por volta de uns 10 anos de idade, não sei precisar com exatidão, mas posso afirmar que ainda não completara 11 anos, pois aos 11 eu ingressei na 5ª série, sexto ano na grade curricular atual, e esse fato precede esse acontecimento.
Compromissos
Cresci em um tempo onde se brincava na rua com os amigos, nosso compromisso era com a escola e de estar em casa na hora que nossos pais determinassem, nem um minuto a mais. Com alguma frequência eu descumpria esse horário e na maioria das vezes o castigo era ficar sem poder ir para a rua por uns dias, mas às vezes eu abusava do horário e levava umas boas palmadas como premiação pelo desacato cometido. Minha mãe dizia que doía mais nela do que em mim, e eu sempre duvidava dessa afirmação, mas hoje como pai sei que é a verdade, embora nunca tenha encostado um dedo em minha filha, já a coloquei de castigo algumas vezes e a mim foi muito doloroso vê-la sofrer no cumprimento de sua pena, porém precisamos preparar nossa cria para o mundo, pois o mundo não se importa com ela.
Diversão
Das inúmeras brincadeiras e aventuras que fazia quando criança posso destacar: Bola (futebol), bolinha de gude, barra-bandeira, cemitério (queimada), pé na bola (a mais divertida de todas), soltar papagaio (empinar pipa) e muito mais, cada uma mais emocionante que a outra. Essas brincadeiras tinham suas sazonalidades, às vezes se ia ao ponto de encontro da molecada e um dos meninos aparecia com um pião, pronto, logo todos estavam mostrando suas habilidades com o artefato, uns equilibrava-o na corda, outros o faziam girar por mais tempo e havia aqueles que o girava na mão. Toda semana uma novidade surgia e uma infinidade de aventuras estavam prontas para serem vividas.
Outra atividade muito comum e apreciada pela criançada era a de apanhar frutas, naquela época, Manaus não era tão grande e por consequência a criminalidade era menor, pelo menos essa era a minha percepção, então a maioria das casas não possuía muros, nem grades e com isso os quintais com goiabeiras, mangueiras, pitombeiras, pés de carambola, pé de abricó e até mesmo cana-de-açúcar eram alvos dos pequenos da vizinhança. Os adultos ficavam bravos, mas na maioria das vezes somente “ralhavam” com a gente, até porque os seus próprios filhos faziam parte do grupo de “saqueadores”.
Início da aventura
Nesse ponto é que de fato a história começa, pois na época de manga costumávamos explorar outros territórios, nos distanciávamos de nossa área em busca de novas mangueiras. Eu morava na cachoeirinha e havia muitos locais a serem mapeados. Um desses locais era o cemitério São João Batista, no Boulevard Álvaro Maia, algo em torno de 30 a 40 minutos de caminhada de onde morávamos até lá, mas não se ia lá a esmo, de qualquer jeito, era preciso acontecer um evento especial para irmos. Então, sempre que se aproximava um temporal, era a condição ideal para se “catar” manga no cemitério, manguita para ser mais preciso. A ventania do temporal as derrubava e a nós cabia apenas colher as caídas.
Fiz essa aventura por diversas vezes, sempre aquela algazarra de meninos reunidos, uns contando vantagens, uns mentindo e outros aprontando com os colegas. Lembro-me perfeitamente de irmos pela Belém, que virou Marciano Armond e parece-me que voltou a chamar-se Rua Belém novamente, mas não pesquisei para confirmar. Na Recife (hoje Mário Ypiranga) uma certa tensão para atravessar o cruzamento, mas nada que pudesse assustar os intrépidos meninos da Vila Operária. Sempre usávamos a entrada do Boulevard, pois a que dava de frente à rua Belém, na rua Maceió, passava pela a administração do cemitério e evitávamos usar essa rota.
O desafio
Certa vez, já ao final da tarde, o céu azul escuro no horizonte e uma brisa mais forte e úmida acusavam que logo mais teríamos um temporal, imediatamente pensamos em ir ao cemitério catar manga, contudo um dos meninos disse que estava tarde e seria melhor deixar para a próxima, – deveríamos tê-lo escutado – mas claro que não demos ouvido a ele e ainda tomámos aquilo como um desafio, e quanto a ele: arregou e não foi. Então seguimos, eu, Bola, Marcelinho, Júnior e o Mário (sim, é esse mesmo Mário que você está pensando).
Nada de anormal na ida, e ainda tivemos sorte, pois a chuva começou a cair e, não há nada mais libertador que um banho de chuva, aquela água forte e fresca lhe lavando o corpo, a alma. Parávamos nas biqueiras das casas com aquela queda d’água forte, nos deliciávamos, esperávamos os carros passarem por sobre as poças para nos banhar e assim aproveitar ainda mais a chuva, por fim chutávamos as poças para molhar um ao outro. Devido a essas estripulias acabamos por demorar mais do que o de costume para chegar ao nosso destino, chegamos já no finalzinho da tarde, ou pelo menos assim parecia, pois como o céu estava carregado de nuvens escuras, deu-nos essa impressão, inclusive as luzes dos postes acenderam-se devido a escuridão.
Chegamos e fomos para os fundos do cemitério, pois era lá que estavam as mangueiras e como era de se esperar havia muitas delas espalhadas pelo chão, comemos algumas por lá mesmo e recolhemos outras para levar. Como nos parecia ser algo profano e desrespeitoso, não fazíamos estardalhaço ou a bagunça costumeira de quando estávamos em bando, muito respeitosamente recolhíamos as mangas e saímos de lá.
A velha do cemitério
Já nos encaminhávamos para a saída quando o Marcelinho avistou uma moça que parecia nos acenar, nos chamar. Ela usava um vestido longo, branco, que a cobria até os pés, tinha a pele morena e os cabelos mais negros que as asas da graúna (minha ascendência das terras alencarinas me permitem usar tão famosa citação), ou talvez fosse o lusco-fusco misturado ao céu encoberto que os deixassem extremamente negros. Hesitamos por um instante, mas além de destemidos e solícitos, éramos também muito ingênuos, então decidimos ir ver o que ela queria. O Bola disse que não iria dividir suas mangas, pois se ela quisesse que ela mesma fosse apanhar.
Aos poucos o destemor foi dando lugar ao medo, ou a prudência e perdemos a vontade de ir, a vontade era somente de se afastar, então colocamos o Júnior à frente, uma vez que ele era o mais velho da turma e passamos a segui-lo. Logo somente eu e o Júnior avançávamos, os outros pararam e somente observavam. A partir desse momento é que começa a ficar estranho, pois quanto mais perto estávamos dela, mais envelhecida ela parecia, o viço da juventude se ia esvaindo conforme nos aproximávamos, começamos a notar cabelos brancos, rugas, uma tez mais castigada. Sem mesmo ter percebido, agora somente eu avançava, o Júnior também ficara para trás e somente eu caminhava inexoravelmente ao encontro da então moça e agora uma estranha senhora.
Face a face
Fiquei a uns três metros dela e ela me disse para não ter medo, agora ela parecia bem mais idosa, a boca murcha como quem não tem dentes, os olhos fundos e os cabelos totalmente grisalhos, ela repetiu para eu não temê-la e gostaria somente que colhesse uma flor murcha que estava ao lado de uma lápide. Ela me disse que havia feito algo de muito ruim para a pessoa que ali jazia e seu castigo foi perecer ao lado dela sem poder deixar esse mundo. Confesso que quis correr, mas não comandava minhas pernas, a boca seca, o coração acelerado e uma sensação de confinamento tomaram conta de mim. Ela continuava falando, porém eu não ouvia, na realidade eu nem percebia o que acontecia ao meu redor, somente aquele pavor angustiante, acredito ter tido um ataque de pânico.
Comecei a ver vultos por trás da velha, como se fossem fumaça, enegrecidos e transparentes, vejo um leve sorriso no rosto da senhora, como o de quem parece ter conseguido algo, vejo pequenos pontos luminosos nas figuras de fumaça, como pequenas chamas e a velha começa a se aproximar, agora sua fisionomia está cadavérica, parecia um corpo mumificado há muito tempo, sinto um odor extremamente desagradável e aos poucos ela se arrasta até mim, chega tão perto que toca em meu ombro com seus dedos longos, magros, ressecados e gélidos. Ouço ao longe, muito longe, quase imperceptível, o que pareceu ser um grito, mas pareço estar em um transe e só consigo olhar para aquela criatura asquerosa em minha frente, já com a outra mão no meu outro ombro.
A voadora
A velha acaba de me dizer para eu ficar tranquilo que tudo ficará bem e logo aquilo tudo passaria, pega a minha mão esquerda e com a unha do indicador fez um risco, enquanto murmurava algo que era incompreensível para mim. Nesse momento sinto um solavanco, um sopapo em minhas costas, era o Júnior que vinha gritando e deu uma “voadora” em mim, cai e saí do transe, perguntei o que tinha acontecido e ele me disse somente para correr, “corre, corre, corre…”, obedeci e só parei na altura da Paraíba (atual Humberto Calderaro).
Depois o Júnior me contou que conforme a velha se aproximava de mim, ela sumia para ele, até chegar ao ponto em que somente eu estava lá, imóvel e de olhar fixo para o além, me disse também que gritou várias vezes para mim e que eu não atendia, então resolveu apelar e foi quando aplicou a voadora em mim, os outros meninos confirmaram o relato do Júnior.
Incredulidade
Naquele início de noite cada um seguiu para sua casa calado, incrédulo, pensativo, será que isso tudo havia acontecido mesmo? Levei umas boas sandalhadas da minha mãe, pois passei por demais do tempo combinado de chegar em casa, mas confesso que achei até bom, me trouxe de volta à realidade. No dia seguinte a vida seguiu, os companheiros de aventuras não tocaram no assunto e a partir de então não mais fomos apanhar mangas no cemitério.
Nota: Todos os nomes foram alterados, todos os locais citados são verdadeiros, embora possam não serem exatamente onde a ação ocorre. Os fatos narrados podem não terem acontecido exatamente como descritos, pois foram vividos por crianças na faixa dos 10 anos. Podem muito bem terem sido somente fruto da imaginação fértil de um grupo de pirralhos que se achavam espertos e destemidos. Contudo para mim foi tudo real e verdadeiro. Carrego comigo uma cicatriz na mão esquerda, um risco de uns dois centímetros a qual eu não tenho explicação, não há um único evento em toda a minha vida que justifique essa marca, somente a unha fina e afiada da velha do cemitério…