Por Carlos Santiago*
Dona Sofia observava pela janela da sala a movimentação diária e repetida de homens e de mulheres que passavam. Pareciam robôs; máquinas humanas a executar as mesmas tarefas até findar a vida. Com quase quarenta anos, ela pensou na sua vida e nas escolhas que não fez, lágrimas caíram…
Nasceu num bairro de classe média, estudou em escola privada e aprendeu línguas estrangeiras. Todos os dias, antes de dormir, rezava pedindo proteção divina. Sempre limpava o lugar em que descansava e colecionava figurinhas de bonecas.
Era uma adolescente obediente. Usava roupas escolhidas pela mãe e pela avó. Evitava ouvir músicas mundanas, por mais românticas que fossem. Suas canções circunscreviam a cânticos gregorianos e outros de cunho religioso. Acreditava que isso acalmava o espírito e a encaminhava ao encontro de Deus.
Ingressou na faculdade de administração. Ganhou comenda de melhor aluna. Dormia sempre tarde e acordava muito cedo para estudar. Nunca deixou de ir às aulas. Nem nas férias parava com os estudos.
Depois de formada, foi trabalhar numa grande empresa. Funcionária de destaque, buscava dar soluções e aumentar a produtividade. Era atenta e dedicada ao trabalho. Saía de casa antes do nascer do sol e chegava ao anoitecer.
Negava a cortesia, as paqueras, os convites para namorar, o casamento tinha que ser o mais perfeito, como era o de seus pais. Muitos homens queriam o seu amor, mas ela preferia esperar o amor da vida, um amor de sonhos.
Tudo na sua vida era lógico, pensado, metódico, padronizado. Mas uma tragédia mudou toda a sua vida. Um acidente de automóvel levou os seus pais e lhe deixou numa cadeira de rodas. Suas pernas foram dilaceradas e uma das mãos foi arrancada.
Agora, sozinha, não tinha os pais, o emprego, o padrão de beleza, nem os assédios dos homens. Não mais acreditava na existência e nas graças de Deus. Pensou no suicídio. Não suportava viver. Refletia sobre a sua existência. O passado povoava sua mente. Tantos esforços, tanta dedicação, tantas privações e anos de louvores. Pra quê?
O Ser Humano caminha na terra sem um sentido para além da existência material, perdido na infinitude do universo, repetindo padrões sociais, angustiado, pressionado e somente com a certeza da morte, pensava dona Sofia.
Questionava-se sobre a vida e o viver. Como suportar a vida sem Deus? Como suportar tanto medo de viver? Como viver numa roda de repetição de tarefas e de dores? Parece que o vazio de sentidos nos faz caçador e vilão do próprio homem.
Depois de alguns minutos, fechou a janela. Era preciso continuar vivendo, buscar fazer aquilo que lhe trazia alegria, porque a vida é a maior dádiva e viver é o maior desafio. É possível ainda encontrar a felicidade e um sentido para a vida. Superar os obstáculos existenciais.
Movimentando a cadeira de rodas, com uma das mãos, ela ligou o computador e começou a ministrar aula livre de francês, via online, mas antes guardou o livro “O Mito de Sísifo”, do filósofo franco-argelino Albert Camus, e pensou: eu não desisto, pois a minha existência tem um sentido, seja ele qual for.
- Carlos Santiago é sociólogo, analista político e advogado.
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