Um grito da floresta antes da COP30: Juscelino Taketomi transforma dor e esperança em poesia e faz da Amazônia o altar do mundo
MANAUS (AM) — Enquanto o planeta se prepara para a COP30, que será realizada em Belém, a Amazônia não fala: ela clama. E o faz na forma de arte. O poema “Canto à Amazônia Dilacerada”, de Juscelino Taketomi, emerge como um grito literário que atravessa séculos de silêncio e devastação, costurando denúncia e esperança em versos que ecoam o coração verde do mundo.
Publicado pelo Portal Meu Amazonas, o texto é um manifesto lírico e político sobre o destino da floresta e dos povos que a habitam. Em suas linhas, Taketomi transforma dor em palavra e floresta em consciência: “os rios são feridas que não se fecham”, escreve o autor, num lamento que transcende o tempo e os tratados ambientais.
O poema revisita as feridas históricas da colonização, o ciclo da exploração e a ganância travestida de progresso. Denuncia o comércio das águas, o tráfico da alma amazônica, o apagamento dos saberes ancestrais. Mas, ao mesmo tempo, convoca o renascimento — o “rouxinol rebelde” que, no simbolismo do texto, representa a insurgência da floresta e a retomada espiritual dos povos da Amazônia.
Mais do que um poema, “Canto à Amazônia Dilacerada” é um ato de resistência poética. É uma oferenda da palavra diante da pressa e da cegueira humanas. Um lembrete de que a floresta não é cenário, mas sujeito — e que o futuro da Terra passa por ela.
Leia o poema completo:
Canto à Amazônia Dilacerada
Juscelino Taketomi
Amazônia, Amazônia,
ventre de rios e trovões,
dizem que teu nome é um bramido verde
que atravessa séculos.
Eu te chamo de cântico esquecido,
coração da Terra que pulsa no escuro
enquanto cidades longínquas te cobiçam,
te traduzem em mapas,
te empobrecem em gráficos,
te sepultam sob discursos de concreto.
Há quanto tempo és a sombra luminosa do Brasil?
A face que o espelho não revela,
a alma que o país perdeu na pressa dos portos?
Teus filhos, dispersos nos igarapés,
carregam o peso da distância,
o exílio das promessas partidas,
a dor de um gigante sem pontes,
onde o asfalto se dissolve no mistério.
Quem te mutilou, Amazônia?
Quem te atou as mãos com as cordas do lucro?
Quem te proclamou divina
enquanto te vendia em relatórios frios?
Quem te transformou em vitrine de cúpulas e convenções,
quem te condenou a morrer de sede
enquanto teus rios imploravam por justiça?
Quem te reduziu a decreto e aplauso,
a plano nunca cumprido,
a causa sem alma defendida por apátridas de terno
que comercializam tua seiva em moedas estrangeiras?
Mas antes deles, vieram outros:
os que cruzaram o oceano com cruz e pólvora,
os que te batizaram Inferno Verde,
os que acenderam o medo nas aldeias,
os que lavraram o sangue dos povos
como se fosse minério santo.
Vieram com promessas e febres,
com a fé travestida de grilhão,
com a ganância disfarçada de salvação.
E sobre as cinzas das malocas ergueram igrejas,
e sobre as igrejas, silêncio.
Roubaram teus deuses, tuas lendas, tuas danças,
deixando-te nua, vigiada por bandeiras estranhas.
Eu te vi, Amazônia,
tremendo sob a tempestade elétrica,
com trovões que suplicavam clemência,
com ventos que riscavam o invisível.
Vi teus guardiões antigos dançando
entre os vapores do Rio Negro,
vi o curupira chutando a poeira dos invasores,
as mães-d’água chorando sobre as dragas,
os encantados fugindo do ouro profano,
o boto se escondendo na vergonha da lama,
o Mapinguari tapando os olhos para não ver o fogo.
E vi teus espíritos reunidos sob as samaúmas,
gritando nas raízes:
“Quem salvará o pulmão do planeta
se o próprio planeta esqueceu de respirar?”
Amazônia, respiração profunda da Terra ferida,
Amo-te como o sonho verde das origens,
a lembrança do Éden antes do medo,
o primeiro suspiro do mundo
quando o Sol ainda aprendia a nascer.
Mas teus povos,
os que sabiam o idioma das folhas,
os que curavam com o som das águas,
os que acariciavam o vento,
foram caçados como sombras,
varridos pelo ouro e pela fé,
expulsos para os confins do horror.
Seus cânticos foram calados pelas caravelas,
suas peles queimadas pela cruz.
Hoje, os que restam
trazem nos olhos o espanto
dos que viram o eterno virar fumaça.
Tuas tribos santas foram crucificadas
e seus ossos dormem sob o solo das plantações,
misturados à poeira das promessas mortas.
Teus rios, mãe das águas,
são feridas que não se fecham.
O Madeira, que espelhava estrelas,
geme sob o peso do mercúrio,
leva nas veias a febre dos garimpos,
carrega o veneno dos homens.
Os peixes, preces interrompidas, flutuam.
O vento traz o cheiro do fim
e o rio que ensinava a cantar agora soluça.
Nos portos, nas trilhas secretas,
corre o outro tráfico, o tráfico das almas.
Mulheres levadas como mercadoria,
crianças trocadas por pedras e promessas,
macacos despedaçados, araras caladas.
A floresta é saqueada até em seus gemidos,
o sagrado virou contrabando,
o milagre virou ganância dourada.
Mas ainda há quem te guarde:
os pajés que rezam sob o trovão,
os canoeiros que navegam esperança,
os poetas que escrevem com o orvalho e as flores.
Eles são a memória viva da Terra,
os que não tombaram e se recusam a esquecer.
Teus minérios dormem como pecados
sob o solo que agoniza:
ouro, diamante, nióbio, terras raras,
relâmpagos da cobiça.
Em ti dorme o futuro,
mas o presente, faminto, o devora.
Querem-te estátua de verde,
mas teu sangue é rio,
teu destino é movimento.
Há um abandono que te cobre como névoa,
abandono consequente das falácias,
das pontes sonhadas,
das estradas que morrem no barro,
das esperanças violadas.
Tu és um país dentro de outro
com um coração batendo sozinho,
um continente exilado.
Manaus, que poderia ser tua capital,
é catedral fluvial sem caminhos terrestres.
E o Brasil distante finge não saber
que respira o ar que tu crias,
bebe a água que tu guardas,
vive da sombra que tu projetas.
Mas virá um dia, Amazônia,
em que de um igarapé esquecido
se erguerá o canto de um rouxinol rebelde,
um novo Ajuricaba.
Ele nascerá da mistura de ira e ternura,
terá asas de relâmpago e voz de bruma.
Cantará sobre o ouro e o lixo,
sobre os rios mortos e os que ainda sonham,
sobre pajés feridos e crianças com fome.
E sua canção percorrerá o mundo,
atravessando fronteiras e consciências.
Nesse dia, os homens lembrarão que têm alma,
os governos lembrarão que têm nação,
os povos lembrarão que têm origem.
O rouxinol cantará, e as árvores se inclinarão,
os elementais voltarão às clareiras,
os rios beberão de si mesmos,
e tu renascerás, floresta e espírito.
Então te erguerás, Amazônia,
com teus filhos de luz,
com tuas tribos de amor,
com tuas cidades feitas de aurora.
Teus rios serão preces,
tuas florestas, templos.
E o mundo virá, não mais para explorar,
não mais para saquear, mas para aprender.
O mundo virá aprender a respirar,
a ouvir a voz da seiva.
E tu dirás: “Sou a Mãe das Águas,
o coração do planeta,
a guardiã da harmonia perdida.
Em mim vibram os chacras da Terra,
em mim pulsa o Espírito do Mundo”.
E o rouxinol, coroado de estrelas,
cantará sobre ti, Amazônia renascida.
Sua voz será fogo e cristal,
Convidando as nações ao despertar:
“Aqui começa a nova era da Terra,
o tempo em que o homem volta a ser Terra
e a Terra volta a ser sagrada”.
Amazônia, Amazônia,
que os homens te redescubram
como templo,
não mais colônia,
não mais espólio,
mas revelação.
Que te amem como origem,
que te cuidem como se cuidam os filhos do Sol.
Que o mundo se curve à tua sabedoria vegetal,
ao teu silêncio cheio de vozes,
à tua dor que ainda floresce.
E quando o último silêncio
cair sobre as selvas,
um rouxinol profético
cantará sobre uma samaúma em flor
e dirá ao Universo:
“Aqui começa a nova história da Terra,
onde o verde renasce das cinzas
e o coração do mundo volta a pulsar
no seio da amada Amazônia,
no seio da nossa Grande Mãe”.
Por que este poema importa
A COP30, que colocará Belém no centro do debate climático mundial, reacende discussões sobre soberania ambiental, preservação da floresta amazônica e a valorização dos saberes tradicionais. Nesse contexto, a obra de Taketomi atua como espelho e alerta: mostra o que a Amazônia sente, e não apenas o que ela sofre.
É o tipo de leitura que faz o leitor sair de si — e ouvir a floresta.
Porque antes de salvar o planeta, é preciso aprender a escutá-lo.

¹Articulista do Portal Meu Amazonas, Juscelino Taketomi, é Jornalista, escritor, cronista e poeta. Há 28 anos é servidor da Assembleia Legislativa do Amazonas (Aleam)
Leia mais artigo de Taketomi:
Saci-Pererê na cidade dos rios mortos
Siga o canal do Portal Meu Amazonas no WhatsApp -CLIQUE AQUI
Fale com a Redação: E-mail: [email protected] e WhatsApp: (92) 99148-8431
