Por: Luciano Falbo – Defensoria Pública do Estado do Amazonas
Manaus – A Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE-AM) garantiu o retorno de uma criança indígena de apenas três meses de idade à sua família após a Justiça Estadual suspender uma decisão de Primeira Instância que a havia retirado dos cuidados dos pais.
O casal indígena procurou o serviço de saúde, comunidade Belém do Solimões, em Tabatinga, após a criança passar mal e acabou sendo afastado dos cuidados do bebê, que foi transferido para Manaus.
A liminar do desembargador Paulo César Caminha e Lima, da Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas (TJAM), foi concedida após pedido feito pelo defensor Leandro Antunes de Miranda Zanata, da 3ª Defensoria Pública do Polo do Alto Solimões, por meio de um Agravo de Instrumento.
Atendimento precário e ação da Funai
O defensor demonstrou ao magistrado que a criança – que apresentava desidratação grave e peso baixo para a sua idade – foi afastada da família por causa de ruído de comunicação e barreira cultural durante os atendimentos nos órgãos públicos. Ele também observou que a participação da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), obrigatória para estes casos, também foi ignorada durante o processo.
O Conselho Tutelar relatou ao Ministério Público que os pais estariam pondo resistências à transferência da criança para ser tratada na capital. A promotoria, então, acionou o Judiciário, que acabou por retirar, de forma precipitada, o poder familiar dos pais e encaminhar o bebê para o acolhimento institucional, na sede de Tabatinga, e, depois, para tratamento em Manaus.
Descaso institucional
A peça ressaltou que os pais, mal orientados, buscando apoio das instituições e visando ao bem-estar e a melhora do estado de saúde do filho, “sofreram todo tipo de descaso institucional e agora foram alijados do convívio com o filho” e que estavam desesperados à procura de ajuda.
O defensor expôs que a medida judicial de suspensão do poder familiar e acolhimento institucional é extrema e que, nesse caso, foi tomada “de forma açodada, sem a realização do contraditório prévio que o caso exigia e sem base em elementos sólidos, tendo sido ignoradas as questões étnico-culturais do caso e sem o respaldo em provas suficientes da intenção de maus tratos”.
Ruído de comunicação
Os pais da criança entendem a língua portuguesa, mas são falantes apenas da língua tikuna. Eles procuraram o atendimento médico em Belém do Solimões porque a criança estava regurgitando o leite materno com frequência, o que causou preocupação.
Contudo, narra o defensor público no agravo, o enfermeiro que atendeu o casal nada comentou a respeito dessa suposta desidratação grave, apenas mencionou que a criança estava um pouco abaixo do peso e que essa situação seria monitorada pela equipe de saúde local.
Na ocasião, prossegue Leandro Zanata, “foi apenas realizada hidratação venosa e, com a melhora, a família foi liberada”.
“Se a criança, de fato, estivesse com o quadro de saúde bem debilitado, como afirmou a psicóloga ao Conselho Tutelar, os pais, durante o atendimento, jamais teriam impedido o deslocamento do filho até a unidade hospitalar de Tabatinga, já que eles mesmos haviam procurado o posto para atendimento”, observou o defensor.
Dois dias após o atendimento, a família recebeu a visita da psicóloga e do enfermeiro. Segundo o defensor, os profissionais nada questionaram sobre a questão de saúde da criança.
“Todas as perguntas foram direcionadas para saber sobre a vida do casal”.
O defensor ressaltou que, embora os requeridos saibam somente se expressar no idioma tikuna, eles compreendem muito bem a língua portuguesa. Com base nisso, acreditam que, durante a visita dos funcionários do Distrito de Saúde Indígena (DSEI) – que não estavam acompanhados de intérpretes, tenha ocorrido um ruído na comunicação.
“Em nenhum momento, os genitores negligenciaram os cuidados com o filho ou apresentaram qualquer tipo de resistência na transferência para tratamento”, destacou Leandro Zanata.
Barreira cultural ignorada
Conforme o defensor, a mãe, inclusive, informou aos funcionários que a criança havia piorado um pouco e que levariam o filho ao rezador, pois suspeitavam que ele estivesse influenciado/possuído por um espírito vingativo, levando em considerarão que o pai havia visitado a casa de um caçador que recentemente tinha matado um macaco.
“Acreditavam piamente que a piora do filho era em decorrência desse infortúnio”.
“Veja-se que há aspectos culturais que demandam análise cautelosa e que foram completamente ignorados no caso”, destacou.
Uma crença tikuna, por exemplo, diz que as crianças podem nascer com algumas características de animais. Em função da sua condição física, os pais relataram que acreditavam que o filho teria nascido como o coatá, uma espécie de macaco magro.
Considerando a situação, Zanata observou que a atuação Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) seria necessária para que o poder familiar sobre a criança fosse retirado, o que não aconteceu. Em manifestação posterior, o órgão federal, corroborado por parecer antropológico, apontou a ausência de negligência dos pais.
O agravo ressaltou que, em momento algum, a família gerou qualquer empecilho para o tratamento da criança.
“Pelo contrário, os próprios genitores buscaram o atendimento especializado e, não tendo ocorrido a melhora, voltaram-se às crenças de seus antepassados”.
Na decisão que restituiu o poder familiar aos pais, o desembargador Paulo Lima citou a manifestação da Funai, que reconheceu que eles “se portaram de acordo com suas crenças e forneceram o tratamento que julgam ser adequado”.
Os pais já estão em Manaus acompanhando a criança.
Texto: Luciano Falbo